quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

Classificação dos modelos de democracia

O artigo do professor Luis Felipe Miguel discute e compara os diferentes modelos teóricos de democracia presentes no debate acadêmico, classificando-as em cinco abordagens principais: liberal pluralista, deliberativa, republicanismo cívico, participativa e multiculturalismo.
De inicio o autor cita David Beettham (Democracia liberal e os limites da democratização, 1993) que afirma que o conceito de democracia é incontestável, sendo uma forma de tomada de decisões públicas que concede ao povo o controle social, ficando apenas a indefinição quanto às teorias da democracia. Sem teoria conceitos são penas conceitos.
Eis a listagem de algumas abordagens classificatórias dos modelos de democracia:
1) A Democracia Liberal-pluralista é a que entende que a realização do projeto democrático passa pela vigência de um conjunto de liberdades cidadãs, competição eleitoral e multiplicidade de grupos de pressão, que se coligam por meio de barganhas, cada um buscando sobrepor seus interesses. Os cidadãos comuns é que formam o governo, embora não governem, pondo por terra a idéia de um governo do povo.
O economista Joseph Schumpeter, autor de “Capitalismo, socialismo e democracia” (1942) é que deu o pontapé inicial para esta concepção doutrinária. Ele começa por demolir os mitos que cercam a democracia, afirmando que ela é simplesmente uma maneira de gerar uma minoria governante legítima. Sua teoria reduz drasticamente o alcance da democracia, na medida em que o resultado das eleições é uma mera somação de preferências manipuladas, preconceitos e decisões impensadas. Coligando-se com a teoria das elites afirma que todas as mudanças políticas seriam repetições do mesmo processo, onde uma elite apenas substitui a outra. Schumpeter é descrente quanto a idéia de que a democracia pudesse cumprir as suas promessas básicas: governo do povo, igualdade política, participação dos cidadãos nas tomadas de decisões. Já Antthony Downs em “Uma teoria econômica da democracia” (1957) conclui que a combinação de eleitores desinteressados e políticos competindo pelo voto era a forma mais perfeita de um governo do povo. Para Mancur Olson em “A lógica da ação coletiva: os bens públicos e a teoria dos grupos” (1965) desinformação e apatia são respostas racionais dentro de um contexto onde não vale o dispêndio de tempo e dinheiro em qualificação política se o peso do eleitor é tão pequeno. Seymour Martin Lipset vai além em “Homem político: as bases sociais da política” (1960) quando vê na apatia e na neutralidade um indício do grau de satisfação do eleitor. Já Giovanni Sartori em “A teoria da democracia revisitada” (1987) avalia que a pequena participação política é a chave para a realização da democracia como processo seletivo dos mais aptos a governar – a meritocracia. Há uma vasta explanação teórica de autores como William Riker, Gerry Mackie, Robert Dahl e Francisco Weffort, dentre outros. A verdade é que esta abordagem apresenta dois problemas centrais: o isolamento da esfera política em relação ao restante do mundo social e a redução da política a um processo de escolha onde os cidadãos são guiados por um entendimento esclarecido de seus interesses.
2) A Democracia Deliberativa é a principal alternativa teórica à abordagem anterior. Jürgen Habermas é o seu principal teórico. Esta abordagem incorpora algumas vertentes da democracia participacionista, apresentando uma ênfase nova as práticas políticas. Segundo Joshua Cohen, em seu artigo “Deliberação e legitimação democrática” (1997), esta abordagem julga que as decisões políticas devem ser tomadas por aqueles que estarão submetidos a elas, por meio do raciocínio publico livre entre iguais. Esta corrente rompe com a percepção da democracia como simples método para a somação de preferências individuais já dadas, dá ênfase a igualdade de participação e a autonomia, isto é, a produção de normas pelos próprios integrantes da sociedade. É apresentado um modelo normativo que produz a critica da política vigente por meio de um parâmetro ideal que remete a uma matriz histórica que é a esfera pública burguesa. Contra este ideal normativo Habermas lamenta a decadência atual da esfera pública, manipulada por estratégias publicitárias. Discussões a parte o que se depreende é que em vez de promotor da emancipação, o ideal deliberativo pode se revestir de um caráter conservador. É possível identificar três dimensões nas quais se manifestam os vieses da deliberação pública, ligados a desigualdades socialmente estruturadas quanto a: 1) capacidade de identificação dos próprios interesses, ligado ao conceito de interesse, crucial para o entendimento das praticas políticas e alvo de polêmicas; 2) capacidade de utilização das ferramentas discursivas, onde as diferentes posições na sociedade conferem diferentes graus de eficácia discursiva a seus ocupantes e 3) capacidade de universalização dos próprios interesses, que se coloca como uma das vantagens do procedimento deliberativo que obriga o uso de um vocabulário do bem comum. O modelo deliberativo postula uma forma legitima de produção de decisões coletivas, mas ignora vieses que viciam seus resultados.
3) O Republicanismo Cívico é onde a política aparece como uma atividade instrumental, como meio para se alcançar o consenso, indispensável para o cumprimento de algumas funções, porém não é um bem em si mesmo. Por isso nesta abordagem a política ocupa um lugar secundário, negado quando, por tradição, se exalta a cidade grega e romana como um ideal a ser imitado, sendo a participação na vida pública o ápice da realização do homem. Para Hannah Arendt em sua obra “A condição humana” (1957) a polis era a esfera da liberdade enquanto na esfera familiar-econômica se convertia no império da necessidade. Maquiavel e Rousseau entendem a liberdade como “ausência de dominação”, exigindo a participação ativa na vida pública, onde se assumem compromissos com os interesses gerais da comunidade. Aqui a ação política não se pode resumir à barganha ou a compromisso entre preferências individuais; deve ser observado o bem comum.
4) A Democracia Participativa nos apresenta uma possibilidade de aprimoramento da representação por intermédio da qualificação política dos cidadãos comuns. Não vêem, como os comunitaristas, uma comunidade já formada, mas não incorrem na atomização social como acreditam os liberais. Aqui a democracia é um processo educativo. Stuart Mill em sua obra “O governo representativo” (1861) coloca o sufrágio universal como o grande mecanismo da participação política. Os defensores desta abordagem entendem que é preciso ampliar os incentivos para se alcançar a cidadania competitiva. A democracia participativa traz à tona a constatação de que é impossível manter a igualdade política onde as condições de desigualdades materiais são grandiosas.
5) O Multiculturalismo ou a política das diferenças. É uma abordagem que afirma que as sociedades contemporâneas são e serão marcadas pela convivência entre grupos de pessoas com estilos de vida e valores diferentes e até conflitantes. A preocupação fundamental desta abordagem é mais com uma teoria da justiça do que com uma teoria da democracia. A democracia é um arranjo político mais propício a realização da justiça. Há três problemas, entre tantos outros, que são tidos como relevantes nesta corrente: 1) é a determinação dos grupos que merecem uma proteção especial dentro da sociedade; 2) é a relação da diferença com a igualdade e 3) é a acomodação entre os direitos de grupos e os direitos individuais. Há de se convir que os grupos não sejam apenas oprimidos e dominados pela sociedade; eles também oprimem e dominam parte de seus integrantes. A corrente mantém uma relação contraditória com o comunitarismo, quando incorpora a percepção da importância dos laços identitários primários e contesta a visão de um “bem comum” único.
Concluem-se que as fronteiras das cincos correntes são fluidas e imprecisas e estas classificações apenas indicam caminhos que podem permitir situar os diferentes autores e obras dentro de um campo mais amplo da tória da democracia atual.

Miguel, Luis Felipe. Teoria Democrática Atual: esboço de mapeamento. In: Revista Brasileira de Informação Bibliográfica em Ciências Sociais, São Paulo, nº 59, 1º semestre de 2005, pp. 5-42.

Jailson Gomes é Sociólogo e Cientista Político
(artigo escrito em setembro de 2007)

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